domingo, 30 de agosto de 2015

PEDRA-SABÃO

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Descubro que escrever textos não é fácil. Escrever textos? É, a expressão textos traz várias modalidades em si, podemos escrever textos nos outros, com ações, olhares e quereres, podemos escrever textos na forma mais corriqueira que conhecemos, o registro idiomático em suporte com signos blindados, codificados e que seleciona público. Nesta última modalidade existem outras subcategorias: formatos, nichos e modos convencionados de se dizer alguma coisa. Escrever para cinéfilos é uma coisa, escrever para academia é outra coisa, escrever para se deixar um rastro no mundo, é ainda outra.
E nesse ínterim comparo o mundo das letras à pedra-sabão, aquela macia, que em bloco espera o escultor que saiba trata-la para adquirir a forma que a inspiração mandar. O texto, metaforicamente, é a mesma coisa. Uma infinidade de possibilidades, a quem a inspiração ou a vontade de discurso, decide a coluna vertebral e o enxerto vem com as anotações de ideias, lembranças e insights. As anotações que se faz enquanto se prepara um jantar, o pensamento de beira de página enquanto se lê um livro que contribua, ou mesmo durante uma sessão de cinema em que o filme seja um fornecedor de subsídios. Deixamos descansar e depois é só fazer a cola do patchwork e aparar as arestas, lapidar o grosso do conteúdo, dar uma lasca aqui, um corte ali, uma lixada acolá e começa-se a dar forma àquilo que até então era uma ideia perdida, sem pai nem mãe, sem eira nem beira.
Escrever não é transmitir, a gente nunca sabe o que o outro vai ler, como vai receber, nem se aquilo que se queria dizer é o que o outro vai entender, seja porque não houve uma expressão competente, seja porque as redes do outro não são as nossas e ele não passou pelos mesmos lugares, não viu os mesmos filmes, não viveu as mesmas emoções, enfim, é outro. Escrever é se jogar, é se livrar de uma ideia que estava na fila atrapalhando a passagem.Ver a escultura pronta é um prêmio, é o momento em que atesta que a ação é tão importante quanto a ideia, que se não for posta em prática cai no vazio e frustra.
Escrever para o vento e a vida, sobre o vento e a vida exige silêncio de alma. Escrever é deixar um rastro de pensamento e existência, exige coragem. Coragem para falar o que não se fala, coragem da possibilidade de cair no ridículo, ousadia para se libertar como poucos conseguem, deixar os ranços e os momentos de inspiração registrados. Escrever é esculpir, é se expor, é ser subversivo, é usar uma arma. E hoje numa sociedade que pouco lê, e quando lê prefere alguma coisa sem qualidade, ou seja lê mal e por conseguinte não escreve, é uma afronta.
Escrever é como esculpir em pedra-sabão. Talvez, a diferença consista no fato de que o escultor vê sua obra pronta, o escritor nunca. Se alguém não se apossar e disser chega, ela precisa sempre de um enxerto, de uma revisão, de uma frase a mais, de uma frase a menos...e o que sobra vira obra-prima para o outro filho, nunca vai para a lata de lixo. As sobras e as reminiscências contam. O que sobra das "aparações" e dos "lixamentos" são reaproveitados. Escrever, talvez ,seja a melhor forma de reciclagem da vida e do pensamento. Escrever é talento? Pode ser. Mas também é válvula de escape, carma e terapia.
Minha pedra-sabão é um papel e meu entalhador é minha caneta (ainda sou dos que escrevem a mão, como num exercício de caligrafia e que gosta de ouvir o ranger da caneta no papel e curte o deslize que a grafia proporciona, como uma forma de prazer), enquanto isso vejo ao vivo minhas ideias se materializarem. No meu mundo esquizofrênico-beleza me sinto um escultor de ideias admirando o meu exorcismo de mim.
Minha escultura, meu registro de alma, meu rastro...escrever para mim é esculpir sentidos.