domingo, 26 de outubro de 2014

OVO DE CODORNA

Partilhar
O mundo em que vivemos é uma invenção bárbara. Inventamos a ciência, as leis da física, explicamos a gravidade, as divisões da atmosfera, a forma de nos relacionarmos com/na sociedade, as divisões de poder, as formas de conexões política/econômica/social e, a partir de nossa criação, atuamos. E institucionalizamos a cena perfeita - também inventada - chamada realidade.
Os muros que criamos para nos limitarmos, caracterizarmo-nos, definirmo-nos são vários. As castas, os extratos sociais, as classes, as hierarquias, as crenças, as diferenças de costumes, sejam culturais ou religiosos, são imaginários necessários para dizermos a nós mesmos que pertencemos a algum lugar, que fazemos parte de alguma coisa. Às vezes não percebemos que esses muros não são barreiras de proteção ou marcas de nascença que carregamos como nossos definidores para o outro, mas esconderijos. Por vezes, limitadores do desenvolvimento de potencialidades que temos, de prazeres que devemos descobrir, viver, e assim, crescermos.  Por outras vezes, são coleiras que nos amarram, que nos prendem diante de um mundo imenso que salta aos nossos olhos com infinitas possibilidades,sem fronteiras, sem paredes, de uma vastidão sem medida. E não vamos, ficamos.
Ficamos porque temos medo, ficamos porque para nós o mundo é a sala, a cozinha, o banheiro e quarto de nossa casa. Não conseguimos enxergar o que está diante de nós como nosso. Para nosso uso, para nos refestelarmos, usufruirmos, explorarmos, quiçá, conquistarmos.
Nos contentamos com o ovo de codorna que é o mundinho que inventaram para gente. Sejamos  rebeldes com causa ou sem causa. Não importa! Que um NÃO sempre acenda todos os nossos sensores. Que um espaço que não conheçamos nos encha de curiosidade e vida. Tudo o que inventaram pra gente foi um ovo de codorna, ninguém inventa  ovo de avestruz pra ninguém. ...Se foi inventado pode ser desinventado.
Ei, você que inventou a pequeneza trate de desinventar!!!!!!


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

"PAIDÓS AGOGOS"

Partilhar
Na Grécia antiga o escravo/aio  que recebia a missão de levar as crianças à instrução (ao que hoje chamamos escola) eram chamados "pedagogos". Aqueles que conduziam pela mão ao caminho da instrução. Poesia pura aperfeiçoada em dois mil e quatrocentos anos.
Conduzir alguém pressupõe condição para. Pressupõe conhecimento (episteme) e experiência de vida.Ser conduzido significa ser aprendiz, a tábula rasa que está sendo preparada para receber o que o mundo diz que é, que tem que ser. Um espirito puro, bruto, que precisa ser lapidado (parece piada).
E essa simbiose virou profissão. Essa metáfora espetacular da vida virou afazer sistematizado, que muda de cultura para cultura, mas está lá. Buscar nesse palheiro, a verdadeira essência do "Paidós agogos" e/ou professor é atividade para poeta hoje.
Ter a noção de que pela maneira da falar, de vestir, de tratar, de se portar, de atuar na vida se está educando alguém, tem uma criança lhe pondo como exemplo. Não é fácil.
Saber que dependendo do que se diz a um deles se ilumina um caminho inteiro ou se cobre de trevas toda uma existência é de uma responsabilidade sem medida. E não é exagero, dentro das alminhas do pequenos é isso mesmo.
Escolher estar no meio de um campo de trigo que é o sustentáculo de uma sociedade inteira, é no mínimo ser louco ou não ter a menor noção do que isso significa. Ser o guardador desse celeiro é missão nobre de uma encarnação, cujo valor foi criado para não ser mensurado. Escolher acompanhar os rebentos e suas famílias é uma aventura assustadora. Aprende-se muito e tem-se uma responsabilidade que vai para além dos muros da instituição a que se pertence.
...E pensar que o cara que tinha essa responsabilidade toda era um escravo...

Feliz dia do professor!

sábado, 11 de outubro de 2014

PAPEL EM BRANCO

Partilhar
Se soubéssemos da importância da escrita da vida. Se soubéssemos sobre a preciosidade de um papel em branco, onde tudo pode ser posto. A mais bela história, a luta mais renhida, a mais aguerrida personagem, a mais triste, a mais enfadonha, a mais alegre, ou a mais esperançosa. Se soubéssemos que a grande força da história não é o final, mas o início. Onde todas as possibilidades estão ali esperando serem escolhidas para entrar em ação. Se soubéssemos que tudo , numa história, se desenha nos primeiros capítulos, prestaríamos mais atenção aos inícios. Seríamos mais atentos aos começos.
Um papel em branco é uma terra que recebe tudo, não rejeita, não questiona, simplesmente recebe. Um papel em branco é um território de exercício de poder, o que se puser ficará. Um papel em branco é um espaço frágil na mão do outro.
E assim não somos nós?! Não escolhemos nosso nome, nem o que vai conceituar o que entendemos por mundo, a não ser o que o outro nos diz. Conceituamos as relações, as pessoas, como as coisas devem ser, de acordo com o que nos dizem. Criamos nosso arcabouço de amor, família, amizade, sucesso, a partir do que uma cultura nos impinge. Traçamos nossa própria história depois que uma sociedade nos entorta, nos poda, nos proibe, nos limita. Aí a história já está no meio, e remar contra o roteiro, fazer discurso direto e indireto, gritar aos quatro ventos, transformar a história em outra, não é para qualquer um.
Toda vez que vejo uma criança ser ela mesma, o belo papel em branco, onde a gente escreve o que quer, e percebo os olhos alheios se enchendo de afeto pelo que veem, me pergunto: É lembrança do que queria ser e não foi? Estão aproveitando o momento de registro daquela ingenuidade que vai ser morta na próxima esquina? A qual nunca mais se verá? ou é pena?....Sabe-se que aquela naturalidade  morrerá, sabemos que os quebraremos até ficarem iguais a nós, falsos, hipócritas e infelizes.
O que vai nos olhos que brilham quando veem o papel em branco, que é uma criança? Esperança de que aquele seja o escolhido, pirracento, que se negue a quebrar e entortar e virar "igual" e mude o mundo? Um Peter Pan que se negue a crescer?  E que, por isso, também sofrerá.
Queremos mudar o mundo e fazemos das crianças o alvo de nossas esperanças, mas continuamos a escrever a história torta. Não ensinamos a serem o que são. Talvez, por medo de que sofram. Vão sofrer de um jeito ou de outro. Não ensinamos a serem camaleões, felizes consigo mesmos, leais a si próprios, perscrutadores do mundo, chafurdadores inteligentes dessa babel de loucos, viventes sãos desse hospício a céu aberto. Quando fazemos isso, escrevemos nesse papel em branco que ele não deve acreditar em si, e que não tem capacidade para viver nesse caos com competência. Escrevemos uma mensagem de impotência, num livro/pessoa cuja história está só começando.
Todos nós somos histórias, todos nós somos nós de uma rede infinita de encontros e desencontros. E não controlamos nada. Já que é assim, Escrevamos uma boa história na vida dos filhos, dos sobrinhos, dos alunos e afins.
Nessa terra de passagem, em que cada um tem um tempo para ficar, para a qual não trazemos nada e nada dela levaremos, e temos tanta coisa para fazer, há que se merecer ser recebido com o mínimo de consciência do que seja essa trajetória enigmática. Quando alguém vem para esta estação de passagem, não vem para ser propriedade sob aspecto algum (maternal, paternal, fraternal, matrimonial) vimos para escrever a nossa própria história a partir do capítulo três. Mas, o capítulo três depende do que pais, familiares, sociedade, cultura e amigos escreveram antes.
A primeira coisa essêncial, acho, na escrita desse livro inusitado que somos todos nós, é querer escrevê-lo; a segunda, talvez, seja recebê-lo muito bem; a terceira, possivelmente, é mandar o mundo às favas e começar do zero....ali, página por página. Vai ser fácil? Nada é. Mas a questão é ser bem sucedido naquilo que nos propositamos a fazer e de acordo com a nossa capacidade. Falhas, equívocos, imperfeições sempre haverão. Às vezes, nem se precisa de tanto esforço, a alma que vem já é pirracenta, basta aparar as arestas.
....Toda vez que vejo uma criança recém-nascida, ou brincante num parque, sem a menor noção do que a espera e vejo os olhares dos que estão à sua volta, penso comigo...Seja Bem-vindo aos próximos oitenta/noventa/cem anos de uma escrita muito difícil, mas que consigas fazer o seu melhor.

Feliz Dia das Crianças!