sábado, 11 de outubro de 2014

PAPEL EM BRANCO

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Se soubéssemos da importância da escrita da vida. Se soubéssemos sobre a preciosidade de um papel em branco, onde tudo pode ser posto. A mais bela história, a luta mais renhida, a mais aguerrida personagem, a mais triste, a mais enfadonha, a mais alegre, ou a mais esperançosa. Se soubéssemos que a grande força da história não é o final, mas o início. Onde todas as possibilidades estão ali esperando serem escolhidas para entrar em ação. Se soubéssemos que tudo , numa história, se desenha nos primeiros capítulos, prestaríamos mais atenção aos inícios. Seríamos mais atentos aos começos.
Um papel em branco é uma terra que recebe tudo, não rejeita, não questiona, simplesmente recebe. Um papel em branco é um território de exercício de poder, o que se puser ficará. Um papel em branco é um espaço frágil na mão do outro.
E assim não somos nós?! Não escolhemos nosso nome, nem o que vai conceituar o que entendemos por mundo, a não ser o que o outro nos diz. Conceituamos as relações, as pessoas, como as coisas devem ser, de acordo com o que nos dizem. Criamos nosso arcabouço de amor, família, amizade, sucesso, a partir do que uma cultura nos impinge. Traçamos nossa própria história depois que uma sociedade nos entorta, nos poda, nos proibe, nos limita. Aí a história já está no meio, e remar contra o roteiro, fazer discurso direto e indireto, gritar aos quatro ventos, transformar a história em outra, não é para qualquer um.
Toda vez que vejo uma criança ser ela mesma, o belo papel em branco, onde a gente escreve o que quer, e percebo os olhos alheios se enchendo de afeto pelo que veem, me pergunto: É lembrança do que queria ser e não foi? Estão aproveitando o momento de registro daquela ingenuidade que vai ser morta na próxima esquina? A qual nunca mais se verá? ou é pena?....Sabe-se que aquela naturalidade  morrerá, sabemos que os quebraremos até ficarem iguais a nós, falsos, hipócritas e infelizes.
O que vai nos olhos que brilham quando veem o papel em branco, que é uma criança? Esperança de que aquele seja o escolhido, pirracento, que se negue a quebrar e entortar e virar "igual" e mude o mundo? Um Peter Pan que se negue a crescer?  E que, por isso, também sofrerá.
Queremos mudar o mundo e fazemos das crianças o alvo de nossas esperanças, mas continuamos a escrever a história torta. Não ensinamos a serem o que são. Talvez, por medo de que sofram. Vão sofrer de um jeito ou de outro. Não ensinamos a serem camaleões, felizes consigo mesmos, leais a si próprios, perscrutadores do mundo, chafurdadores inteligentes dessa babel de loucos, viventes sãos desse hospício a céu aberto. Quando fazemos isso, escrevemos nesse papel em branco que ele não deve acreditar em si, e que não tem capacidade para viver nesse caos com competência. Escrevemos uma mensagem de impotência, num livro/pessoa cuja história está só começando.
Todos nós somos histórias, todos nós somos nós de uma rede infinita de encontros e desencontros. E não controlamos nada. Já que é assim, Escrevamos uma boa história na vida dos filhos, dos sobrinhos, dos alunos e afins.
Nessa terra de passagem, em que cada um tem um tempo para ficar, para a qual não trazemos nada e nada dela levaremos, e temos tanta coisa para fazer, há que se merecer ser recebido com o mínimo de consciência do que seja essa trajetória enigmática. Quando alguém vem para esta estação de passagem, não vem para ser propriedade sob aspecto algum (maternal, paternal, fraternal, matrimonial) vimos para escrever a nossa própria história a partir do capítulo três. Mas, o capítulo três depende do que pais, familiares, sociedade, cultura e amigos escreveram antes.
A primeira coisa essêncial, acho, na escrita desse livro inusitado que somos todos nós, é querer escrevê-lo; a segunda, talvez, seja recebê-lo muito bem; a terceira, possivelmente, é mandar o mundo às favas e começar do zero....ali, página por página. Vai ser fácil? Nada é. Mas a questão é ser bem sucedido naquilo que nos propositamos a fazer e de acordo com a nossa capacidade. Falhas, equívocos, imperfeições sempre haverão. Às vezes, nem se precisa de tanto esforço, a alma que vem já é pirracenta, basta aparar as arestas.
....Toda vez que vejo uma criança recém-nascida, ou brincante num parque, sem a menor noção do que a espera e vejo os olhares dos que estão à sua volta, penso comigo...Seja Bem-vindo aos próximos oitenta/noventa/cem anos de uma escrita muito difícil, mas que consigas fazer o seu melhor.

Feliz Dia das Crianças!



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