domingo, 23 de outubro de 2011

MÃOS

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Não existe nenhum instrumento em toda a natureza e em todo inventário de fabricos humanos que tenha mobilidade, a malemolência, a graça, as rotações, as potencialidades e as habilidades das mãos humanas.
A robótica tenta, há muito, imitar/simular as rotações e movimentações feitas pelas mãos, a coordenação acurada e fina que possibilita pegar um grão de arroz e a força que suporta o peso do próprio corpo.
As mãos humanas são singulares. A cirurgia plástica conserta tudo, menos as mãos. Retirados algumas sobras de pele comprometemos os movimentos e a sua funcionalidade.
As mãos são servos obedientes para trabalhar, para cuidar dos afazeres domésticos, dos filhos, fazer a higiene pessoal, praticar o exercício do tato, exibir uma jóia. Mas, são extremamente desobedientes para aviltarem seu próprio dono. Jamais nos estapeamos da mesma forma e com a mesma intensidade que o fazemos a outra pessoa. As mãos freiam no ar e são incapazes de nos agredir.
 São o outdoor do tempo. Quando nascemos são pequenas, lisas, frágeis, incipientes, sensíveis, lindas e vão se tornando exuberantes, exibidas, sensuais, insinuantes, reveladoras, poderosas e, na curva de descendência no gráfico da vida, vão saltando os grumos, perdendo a elasticidade, nos entregando de bandeija aos olhares perscrutadores da idade. Cremes são bem-vindos, mas não resolvem. 
E com a experiência vão aprendendo e nos ensinando, falam por nós. As nossas mãos contam a nossa história, falam da nossa vida. As nossas mãos chegam primeiro que nós em qualquer lugar e fazem parte da nossa expressividade em qualquer circunstância. Mãos, adereço de funcionalidade que a natureza nos deu e nem notamos.
 Mãos são instrumento de carinho. Com elas bendizemos o outro. Com o nosso toque conhecemos o outro e o mundo. É o instrumento do trazer, as mãos trazem pessoas para nós, alimentos à nossa boca, proteção aos nossos olhos, são mágicas. O toque de alguém especial nos transporta, são varinhas de condão.
Mãos são olhos para os cegos, são elevadas a enésima potencia em sua funcionalidade, tateiam, percebem, sentem, enxergam. São língua para os surdos.
As mãos são símbolos, símbolo de liberdade, de alegria - quando das palmas, de respeito - quando do comprimento, de protesto, de saudação, de prece, de juramento, de súplica.
Mas, para mim, as mãos são a porta de entrada das sensações, parabólicas captadoras de energia. As mãos são instrumento de desbravamento da vida, de descoberta do novo, de exercício de existência. As mãos são sensores de vida. É um prazer tê-las e usá-las. Nossos amigos são as nossas mãos.

E....se chegarmos lá, é assim que serão vistas por mim, por você e pelas últimas pessoas que conosco estiverem. As nossas mãos são a nossa verdadeira cara.


domingo, 16 de outubro de 2011

SOLITUDE

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Ser só é uma escolha. Não há que se ter pena do só. O só é alguém que para usar produtivamente o seu tempo, vive procurando o que fazer, cursos, grupos de amigos, programação cultural, gente para conversar, alguma coisa para ler e outras para escrever.
A vida dos sós é tão igual. Organização da coluna vertebral dos afazeres cotidianos, que é só uma maneira rebuscada para denominar rotina. Sem ela o só é poeira, o nada do nada.
O só é aquele que impôs tanto o seu jeito de ser que ficou só. Mas gosta do seu dia-a-dia, de ficar só. O só é feliz só.
Agenda organizada, agora é hora de curtí-la. Aquela xícara para aquele chá, a outra para o café. Aquele horário da leitura dos jornais, aquele outro da leitura do livro. O sagrado momento das refeições. Sim, porque o só também se alimenta e, é aquele que se libertou da mania de não almoçar sozinho, de não jantar sozinho e curte isso. Como um pobre mortal resignado à sua realidade e tirando dela o melhor proveito. O que não tem jeito agente  acostuma.
Escolher as músicas que gosta sem se preocupar com o gosto alheio. É o cultivo nobre do egoísmo. Nobre porque o oposto disso significaria a depressão e a dependência emocional patológica. Nada indicado.
A solidão é o espaço/tempo em que o egoísmo é uma conquista a ser celebrada e recebe apelidos como: auto-estima, superação, coragem, apreciar a sua própria companhia e etc... Na verdade uma afronta aos moldes que nos foram ditados desde outrora, mas uma necessidade de vida ou morte para quem fez a escolha do só. O só é feliz só e só.



domingo, 9 de outubro de 2011

PALCO DE EMOÇÕES

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O que é a vida? um caminho, uma estrada, encontros, resgates, uma linha, uma representação, um palco.
O que é um palco? um tablado onde se apresentam estórias, onde se vive, por alguns instantes, uma vida que não é a nossa.
O objetivo de um espetáculo é distrair, desincafifar da própria vida, das agruras existenciais e, por alguns instantes, viver por tabela a vida que o ator finge viver. Refletir, sentir emoções que não são comuns no nosso dia-a-dia, pois se está esquizofrenicamente em outra vida.
Paremos para pensar: viemos não sabemos de onde, para fazermos não sabemos o quê, nos distraimos com a vida do outro, buscamos coisas que não levaremos quando retornarmos para  onde viemos, que é o lugar do qual não lembramos. Alguém marcou um período para este pique-esconde. E tudo o que acontece nesse ínterim é: chorar, sorrir, sofrer, se alegrar, se decepcionar, encontrar, desencontrar, esperar, sonhar, sentir, ressentir, compreender, entender, se desentender, se interessar, se desinteressar, se entusiasmar, desistir, começar de novo.
A alegria de estar com os coleguinhas da/na escola; o sonho de ser médico ou astronauta; a tristeza da primeira perda de alguém que se vai do nosso palco; o entusiasmo do primeiro amor; a hecatombe fisiológica da paixão; a dor do ir-se dessa paixão; o empreendedorismo do casamento, a felicidade e a sensação de vitória, de ser normal, de fazer o que todo mundo faz; a descoberta do prazer da originalidade, de fazer o que só você faz, o que só você é; o deslumbramento ao cubo de se ver perpetuado em outrem, a prole, os filhos; a compreensão da vida como repetição eterna de um ciclo que só se renova porque os atores se acabam, se vão.
O choro, da alegria, o choro da dor, o choro do arrependimento, o choro do fracasso, o choro do nunca mais choro, o choro da saudade, o choro da vontade.
O sorriso da felicidade, o sorriso da saudação, o sorriso da pose, o sorriso da recepção, o sorriso de eu te compreendo, o sorriso do que bom te ver, o sorriso da satisfação, o sorriso da surpresa, o sorriso da paz, o sorriso do exorcismo, o sorriso da ansiedade, o sorriso do descontrole.
O abraço...Ah! o abraço. Abraço é sempre de quanto tempo tem. Quanto tempo tem que não te vejo, quanto tempo tem que não te toco, quanto tempo tem que não troco calor com você. O abraço é uma confissão curta de saudades polidas.
E tem as outras emoções.... as ruins, as danosas, aquelas que evitamos, não falamos, não queremos, não atraímos, mas elas existem, estão lá e as sentimos. A raiva, a ojeriza, o desprezo, o incômodo, o suportar, o tolerar, o ódio, a substimação, a inveja.
Somos esponjas. Absorvemos absolutamente tudo ao nosso redor. As absorções são sempre subjetivas. Sentimentos, sensações, energias. Nosso mundo é material até a página dois, primeira linha do primeiro parágrafo. 
O nosso palco, onde vivemos essa vida, é um palco construído para testar os fusíveis das emoções. Viemos representar a nós mesmos num mar de sentimentos e morremos afogados nas distrações. Já que a peça de teatro é essa, representemos/vivamos para ganhar o Tony.



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

ALPHAVILLE - A CIDADE SEM LENÇOS

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Alphaville - Une étrange aventure de Lemmy Caution . Elenco: Eddie Constantine, Anna Karina, Akin Tamoff, Lazli Szabo, Howard Vernon. Direção:Jean-Luc Godard. Produção: França/Itália. P&B.1965, 99'

O filme em questão é uma ficção científica produzida em preto e branco numa década sem adventos tecnológicos como conhecemos hoje. Os contextos relativos ao  enredo - sociedade tecnicalista, os aspectos técnicos da produção, a transversalidade de linguagens e as imbricações pessoais do cineasta,  pontuam todo o  conjunto da obra.
A aventura se dá numa cidade que abole palavras do dicionário, dentre elas: amor, medo, consciência, liberdade e ternura, tudo o que remete a humanização. Tem como premissa maior a lógica, a eliminação do imponderável da experiência humana. Tem como lema: Silêncio, Lógica, Segurança e Prudência. Seu mentor, um computador chamado Alpha 60, instalado no Intituto de Semântica Geral da cidade. A bíblia, o orientador de condutas, era o dicionário, o tal mexível ao bel-prazer das manipulações necessárias.
O controle era dado pela  significação da linguagem. A vigilância era perene e não havia registros dos feitos ou acontecimentos. A oralidade tinha que dar conta do recado, mas não era possível.
A cidade não tinha passado nem futuro. Os que não se adequavam, se suicidavam ou eram executados em massa, eletrocutados nas salas de cinema em suas poltronas elétricas confortáveis e, em seguida eram jogados diretamente no lixo, não serviam. Os que casualmente não morressem eram levados para os hospitais de enfermidades longas para serem tratados  até serem considerados adaptados a realidade.
 Haviam também os criminosos condenados, que eram executados individualmente por um pelotão de fuzilamento, num espetáculo à parte. Consistia numa apresentação de nado sincronizado, onde os condenados eram encaminhados à prancha de saltos, faziam seus discursos, numa espécie de último desejo concedido e, em seguida eram metralhados, caindo na piscina. As meninas do nado com facas em punho, mergulhavam em ordem cronometrada e terminavam de matar o meliante a estocadas e iniciavam sua graciosa apresentação. Os crimes desses indivíduos? chorar. Um deles foi pêgo chorando no sepultamento da esposa. Chorar era crime punível com morte.
Neste contexto sombrio e hermético surge Lemmy Caution, um agente secreto disfarçado de jornalista de um jornal chamado Le figaro-pravda. Alphaville é capital de uma Estado totalitário e a missão do herói é destruir o computador central da cidade,o Alpha 60. Inicialmente procura os agentes secretos enviados anteriormente e cuja missão não havia sido concluída, dentre eles Dick Tracy e Henry Dickinson ( identidade de Flash Gordon) e o fio da meada da imiscuidade de linguagens impingida por Godard inicia-se aqui.
Uma cidade de regime totalitário, cuja negação são as emoções, cuja lógica consiste em eliminar a liberdade da experiência humana. Não se pode chorar, por ser considerada uma atitude ilógica, manifestação de "humanitude", em relação aos questionamentos - o porque interrogativo havia sido banido somente era permitido o porque elucidativo. (Why/no - Because/Yes).
 Ninguém sabia o significado da palavra amor e, não por acaso, o ditador se instala no instituto de semântica geral; não por acaso, o dicionário é o orientador de conduta ao mesmo tempo que é o instrumento de manipulação. A heroína, Natacha - personagem de Anna Karina- diz num trecho do filme que por vezes vê palavras de que gostava serem retiradas do dicionário. A liberdade é tolida pela planificação da ação, pela previsibilidade e estudos matemáticos de causa e consequência do que tem que estar sob controle. Consciência em sua plenitude não  tem-se noção do significado. A consciência vivida é a tecnicalista, engessada em detrimento da consciência libertadora. O homem da técnica é um homem sem emoções.
Não havia registros na cidade, a narrativa da história era dada pela versão do alpha 60, o ditador. Lemmy, o herói da estória, chega com uma máquina fotográfica registrando tudo o que pode e o que não pode, os fuzilamentos, por exemplo.
As execuções em massa, não por acaso, eram realizadas em salas de cinema. Um lugar onde a manipulação das emoções se dá pela significação das palavras, imagens e ideologia. Tal  serve, também, como instrumento de morte, e ali se morre de fato  mesmo estando vivo. Caso o cidadão resista, ainda têm-se os órgãos de propaganda que se incumbem de fazer uma lavagem cerebral mais eficaz nos tais hospitais de enfermidades longas. As únicas mortes dignas eram as dos condenados que morriam esbravejando seus discursos. Em um deles:" Ouçam-me, normais, nós vemos a verdade e vocês não vêem. A verdade é que a essência do homem é amor, fé, coragem, ternura, generosidade e sacrifício, o resto é obstáculo criado pelo progresso e pela cegueira da ignorância" Não por acaso, é a cara de Jean-Luc Godard, poder-se-ia dizer até que era o próprio Godard gritando.
O surgimento do herói tem sua linearidade de ação bem contextualizada, a começar pelo nome: Lemmy Caution, que remete a expressão inglesa Let me caution about it, que significa em tradução livre deixe-me precavê-lo acerca de, numa alusão mais que óbvia ao objetivo da missão do herói, alertar, despertar. Não por acaso, numa das primeiras cenas o livro lido por Lemmy na cama do hotel é Le grand Sommeil - O grande sono, deixando uma mensagem subliminar do estado político/existencial da cidade. Lemmy estava disfarçado de repórter de um jornal chamado, não por acaso, Le figaro-pravda, a junção do nome de um jornal de direita francês e um jornal de esquerda da ex-união soviética, Estado também totalitário e  que na época da filmagem ainda existia. Inserção que remete-nos a uma evocação à neutralidade só suscitada numa sociedade tecnicalista onde os extremos isolados não são bem vindos.
Quando Godard insere nomes de heróis de histórias em quadrinhos como Dick Tracy e Henry Dickinson  (Flash Gordon) logo no início da trama, há um prenuncio de mistura de linguagens. Já havia sido apresentada a arte pictórica num mural gigantesco logo nas primeiras cenas, a música da máquina do quarto de hotel, o livro " O grande Sono", as citações dos heróis  em relação a arte e a conversa com próprio Henry Dickinson, que evoca a época em que a cidade tinha, poetas, pintores e músicos. O fio condutor e que remeta a salvação é a poesia através do livro de Paul Eluard -  La Capitale de la Douleur - A capital da Dor - que é entregue à Natacha para que leia as partes sublinhadas. Os takes, as tomadas, as expressões, os cortes abruptos remetem-nos às lacunas das estórias em quadrinhos e há ainda a fotografia, que aparece como uma das formas de registro e de contação de uma história, para além da oralidade de Alpha 60.
A missão de Lemmy Caution, além de destruir Alpha 60, é trazer luz à cidade de Alphaville. Filmado com iluminação natural e elétrica comum, ou seja extremamente escura para os moldes de uma filmagem e muito principalmente em preto e branco. Conta-se que Godard perdeu kilômetros de fita de filmagem nesse trabalho por conta dessa opção. E, não por acaso, filmado em Paris- Cidade Luz, deixando claro o objetivo de evidenciar o sombrio e a treva do não-conhecimento e da não-liberdade.
Godard usa a poesia como elemento da literatura que traz luz, consciência, repõe as palavras tiradas do dicionário, pois mesmo sem traduzí-las, a poesia as marca, embute, fixa e as instala na alma, insere-as no repertório pessoal e incita as emoções. A mensagem de que a verdade está na arte, de que o homem habita a terra poéticamente, de que a poesia é o brotar da realidade, o acontecer da vida, o florescimento, o lugar privilegiado, de que a relação pela poesia não é clientelista é existencial e que a palavra poética não é palavra dicionarizada.
E neste contexto, não por acaso, Godard cria a cena de amor mais sutil do cinema, é na minha opinião a mais bela. Lemmy entrega o Livro de poesias "A capital do dor" à Natacha e pede que ela leia somente as partes sublinhadas e em seguida tentam encontrar o significado da palavra amor em contraposição à volúpia.
Alphaville se tranforma no certificado de "humanitude" de Godard quando metalinguageia emoção através do cinema, da poesia e da movimentação da câmera, contrapondo a cena inicial do farol, olho de Alpha 60, com a cena final de Natacha, em close, com os olhos piscando na mesma sintonia do farol de Alpha 60 dizendo "Je t'aime" numa alusão  clara de que a tecnicalidade foi vencida pela "humanitude" e de que o amor foi re-inserido no dicionário.
E Godard, no seu jeito Godartiano de ser, não por acaso, coloca a sua musa, Ana Karina - personagem Natacha, após terem sido casados por seis anos e de uma separação pedida por ela no ano anterior, em uma cena de amor recitando um poema e numa cena em close para a câmera/godard dizendo eu te amo,  num registro ad eternun para ser revisitado em secreto. isso é o humano Godard, simplesmente, sublimemente Godard. Com Jean-Luc Godard, nada é por acaso.