domingo, 14 de agosto de 2016

A SORDIDEZ QUE NOS UNE

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"Perdoamos tudo, menos o sucesso alheio, este continua sendo uma ofensa pessoal" 
(Nelson Rodrigues)

Em plenas olimpíadas tropicais, com o mundo inteiro por aqui (os que não estão in persona estão virtualmente ou acompanhando os noticiários) estamos assistindo a um show de bola das mulheres, literalmente. E é nessa vibe que vou aproveitar para me apropriar de um acontecimento, inusitado para o evento, e que tomou proporções inacreditáveis para versar sobre a nossa sordidez e hipocrisia. Não sem propósito, ainda vou misturar a uma leitura de cabeceira recente: "A detração: breve ensaio sobre o maldizer" de Lendro Karnal, para fazer algumas pontuações que julguei pertinentes para o argumento que quero desenvolver e expurgar esse incômodo que se instaurou em minha alma e entalou em minha garganta após as 'notícias' sobre a vida privada da atleta brasileira de saltos ornamentais Ingrid Oliveira (Aqui!) . Tomando como start esse assunto inócuo e desnecessário que virou manchete, e misturando aos ingredientes o machismo (doses módicas), a repressão sexual feminina (à gosto) e o hábito ancestral da maledicência com upgrade - a velocidade e alcance da Internet -  e sem a menor intenção de ser breve, vou tentar traçar um painel superficial da liberdade sexual feminina para tentarmos entender o que acontece.
Nessa semana foi noticia nos jornais  a 'escapulida' de uma atleta brasileira dedurada por sua colega de quarto. Entende-se a colega de quarto comunicar o fato aos responsáveis já que foi convidada a dormir em outro lugar, e por conseguinte, o faria desconfortavelmente na noite anterior a uma competição importante.  O que não dá para entender é a proporção que a notícia tomou e a associação da colocação da atleta nos resultados das competições com o fato. Sabemos que se fosse um homem, o colega de quarto não só seria compreensivo como, também, não haveria celeuma alguma.
O exercício de liberdade feminina sempre pareceu incomodar sociedades inteiras. O prazer feminino, então... demonizado desde as eras da medievalidade, nem se fala. Ninguém nunca soube o que fazer com ele - nem as próprias mulheres. Logo, ele era/é contido. Seja pela religião, seja pelas normas sociais (todos nós já ouvimos as histórias de nossas avós que retratam bem esse aspecto). Até bem pouco tempo sexo (para as mulheres direitas) era 'permitido' somente depois do casamento. Fora dele tinha nome e era pejorativo (isso só para as mulheres). Veio a tal 'liberação feminina'. Não podia, mas passou a poder na marra. Hoje temos algumas liberdades. Sim, algumas, e nos regozijamos tanto disso que nos comportamos como gratas. Como se nos fosse concedida, quando na verdade conquistamos isso com sangue, suor e lágrimas. Muito principalmente no campo da maledicência. O arcabouço familinha tradicional continua sendo o filão principal (embora já tenhamos avanços nesse aspecto) que garantem a continuidade da espécie (e que espécie!!!!!), a segurança social e a proteção. Mas, e o prazer? Quem fala nele?
O prazer feminino assusta. (Confira!) Quem burla as regras que esbarrem na questão do prazer é alvo de consequências: alijamento social,  pechas, etc. Estamos evoluindo aos poucos, mas na linha ode ao prazer ainda temos muito o que conquistar, principalmente no que diz respeito às mulheres, e o pior, entre nós mesmas. Hoje por mais que a literatura médica ainda devote mais páginas de seus compêndios à glande do que ao clitóris (já foi pior) conquistamos o direito de gozar. Vejam bem, algo que faz parte da natureza, da nossa fisiologia, e que para nós é conquista de DIREITO. A questão é que nem todo mundo goza, ou pelo menos, não faz do jeito que fantasia ou  com quem gostaria. E assim temos a horda de infelizes. Aqueles cuja felicidade do outro é uma afronta. (exercício da sexualidade por prazer é exercício de felicidade). Acrescentando aos ingredientes o fato de termos a detração/maledicência na medula misturada às nossas células-tronco, a massa está pronta para ser levada ao forno e ser transformada num bolo-bomba.
 Karnal em seu ensaio versa sobre a nossa curiosidade ancestral sobre a vida pessoal alheia. Sobre o nosso radar que se atrai pelo medíocre e o comezinho. E, é claro, a expurgação de toda a nossa infelicidade pela simples falta de coragem de sermos nós mesmos, e quiçá, fazermos a mesma coisa que condenamos veementemente. Podemos ser inimigos uns dos outros, mas se encontrarmos alguém para odiarmos juntos e um judas  para malharmos estaremos unidos enquanto durar a fome. O autor versa ainda sobre a historicidade da maledicência e vai de Jezebel a Maria Antonieta com muita propriedade e com um sarcasmo gostoso de acompanhar. Traça para nós a fisiologia da maledicência. De todos os relatos narrados - e são muitos e competentemente abordados -  se encontra um lugar de intercessão, o de diminuir alguém: "O que marca a detração é a intenção de atacar, de diminuir, de jogar lama no alvo do meu veneno. Depreciar, como já insinuamos, significa elevar minha posição" (p.15). O exercício de poder, de causar dor e prejudicar. Mas, muito principalmente, o de confissão de uma infelicidade cavalar.
Quem é feliz, é feliz e pronto. Não tem tempo para lembrar do outro, do que faz, com quem anda. Quem goza gostoso está pouco se importando sobre quem dorme com quem. Aliás, se você se preocupa com quem seu vizinho dorme, você está com sérios problemas. Nesse ínterim, nossa atleta, cujo caso fomentou a escrita deste texto, além de ter a derrota atribuída ao fato ainda ficou com a pecha de devassa. O parceiro de estrepolias de alcova, não. Além de se classificar ainda está com a boa fama de ter 'comido' a 'devassa'. Isso derruba qualquer exercício de prazer na sexualidade, qualquer projeto de felicidade nessa área. Nos faz pensar na teoria da conspiração contra o exercício da sexualidade feminina, como se fosse uma maldição que paira sobre as pobres almas dos homens. Parece um projeto de fomento a infelicidade e ao terror.
Voltamos a era da inquisição. Em pleno século XXI, em que mulheres pagam suas contas, moram sozinhas, constroem seus patrimônios em seu próprio nome, ainda alimentamos um movimento de fogueiras para queimar as bruxas que gozam. E que ousam fazê-lo fora da instituição casamento - até porque por lá se goza muito pouco ou nada - longe das rédeas de poder que prometem proteção, longe do esterótipo de acompanhadas. Até porque, somos nossa melhor companhia.
Hoje queimamos as bruxas livres, queimamos as bruxas felizes, que podem mandar o mundo e seu viés de hipocrisia à merda, porque construímos isso. O usufruto do próprio corpo não é direito é dever. Ele acaba, esta aí para ser usado, usufruído em todas as suas potencialidades. Não temos que pedir licença, não temos que nos deixar abater.  GOZEMOS TODOS!  e o resto que se f...! (o que não deixa de ser voto de felicidade. rsrs)

"(...) Se fôssemos sábios, não atacaríamos a ninguém, nem faríamos piadas de ninguém, nem teríamos preconceitos com ninguém. Se fôssemos sábios, não haveria detração nem problemas no mundo causados pelo preconceito. Em vez de risos nervosos por piadas preconceituosas, riríamos com as crianças, com o sol e com o mar. Se fôssemos sábios....." (Karnal, 2016; p.100)



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