domingo, 27 de maio de 2012

HOUSISMO - parte I

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Dr. House M.D - Elenco: Hugh Laurie, Omar Epps, Robert Sean Leonard; Produtores: Paul Attanasio, Katia Jacobs; Roteiristas: David Shore, Bryan singer; Criador: David Shore.
Terminou essa semana, oficialmente, nos EUA uma série televisiva que fez sucesso no mundo inteiro e foi sagrada como a série mais vista no planeta. Exibida pela FOX de 2004 a 2012 e aqui no Brasil pelo Universal Channel. A última temporada completa, inclusive o último episódio, já está disponível na Web. Aqui no Brasil só termina em junho. Trata-se  de Dr. House uma série médica, criada por David Shore, um escritor canadense aficcionado por Sherlock Holmes, e que tem como roteiro histórias que colocam um médico como investigador e anti-herói, doenças como vilões a serem vencidos e a jornada de diagnóstico e cura como uma aventura imiscuida com o cotidiano. Indicada e premiada  durante os oito anos de exibição, Dr. House, interpretado brilhantemente por Hugh Laurie é um médico infectologista e nefrologista, pessoa comum, com problemas comuns, com personalidade bastante controversa, mau-humorado, ceticista, misântropo (anti-social), sarcástico, sem ética, manipulador, chantagista, apostador compulsivo dentre outras coisas.
O contexto é um hospital universitário fictício em New Jersey, as doenças abordadas/encenadas são raras e reais, a série contou com uma consultoria médica permanente para orientação.
A influência de Sherlock Holmes é visível e gritante. A similaridade do nome, Holmes remete a Home que em tradução livre é lar; House da mesma forma é casa; a logística de solução dos casos - método socrático de investigação filosófica, condução de raciocínio e processo de reflexão; o caráter psicológico usado para desvendar os mistérios; o poder de observação e dedução; o uso da bengala; ambos tocam instrumentos musicais: Holmes toca violino, House toca piano; a dependência química: Holmes é viciado em cocaína, House em Hidrocodona - Vicodin; a amizade de Holmes com John Watson, da mesma forma a de House com James Wilson; o maior inimigo de Holmes era o professor Moriarty, o homem que tenta matar House chama-se Moriarty; Ambos são desafiados por uma mulher  que os vence, em Sherlock Holmes é Irene Adler, sendo mais inteligente que ele no conto o Escândalo na Boemia, e citada em outros contos como o desafio a altura; em House é Esther Doyle - qualquer semelhança com o sobrenome do autor de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, também é proposital - ela é uma obsessão por não haver conseguido diagnosticar a doença que a levou  a óbito, ou seja, vencido pela morte; o número do apartamento em que moram é o mesmo, 221B.
Gregory House era, como personagem, alguém que tinha a missão confessa de ser ele mesmo com todos os defeitos e imperfeições e a coragem de encarar todos os entreveros da vida assumindo as consequências. Era alguém que sofria de uma dor insuportável devido a necrose do músculo quadríceps após uma cirurgia mal sucedida, deixando-o manco, o que o levava aos analgésicos e que o levava ao vício. Era alguém que sabia seu pai de criação não ser seu pai biológico, sem ninguém o haver contado, somente pelas percepções e considerações que fazia, vindo a confirmá-lo depois. Alguém que sendo um gênio convivia mal com inteligência comum. Alguém que não respeitava regras e o fazia de propósito, assistia novelas médicas no trabalho, jogava jogos eletrônicos na frente da equipe e dos pacientes, fazia refeições na UTI. Alguém que afrontava o poder instituído. Alguém que usava a irreverência como arma para constrangimento. Alguém que tinha o deboche como marca registrada, alguém para quem a vida era um jogo a ser jogado com placar.
Mas também alguém que se importava, sem confissões ou demonstrações. A morte de um paciente era uma perturbação insane, a culpa pela morte de uma colega, Drª Amber ( Anne Dudek), a inquietação pelo suicídio de um médico da equipe, Drº Kutner (Kal Penn), não se perdoando por não haver percebido algum indício. Alguém que confrontava Deus e disputava poder com o que se fabrica de imaginário do Todo-poderoso.
O fenômeno de ter um grande público no mundo inteiro admirando, acompanhando e apreciando um anti-herói que usurpa os amigos, chama a todos de idiotas, invade o consultório da psicanalista da ex-mulher para roubar-lhe a ficha médica e saber a quantas anda a relação dela com o atual marido, que é capaz de agredir um paciente para mostar que está certo, que é capaz de tirar um pedaço da orelha do pai de criação no velório para fazer um teste DNA, alguém que tem o prazer excepcional de estar sempre certo, faz pensar.
O que de fato é admirável no Dr. House não são suas sandices mas, o ponto de intersecção que algumas de suas posturas tem conosco, com o que somos escondido ou com o que gostaríamos de ser. Ter a liberdade de dizer o que quiser e a capacidade de arcar com as consequências, a sensibilidade reprimida, que tanto a modernidade nos impinge, e no caso do House, evidenciada pela música e sua transformação diante dela.
A frase de cabeceira de Dr. House era " Todos mentem" numa espécie de lema de vida  usado como registro oficial da hipocrisia humana institucionalizada. A necessidade de mostrar as pessoas felizes que eram pseudo-felizes, como que numa missão de resgatá-las da ilusão, tendo a realidade nua e crua como o grande libertador, a necessidade de desconstrução do mundo do outro para justificar que a insatisfação com o mundo é que era o normal. A forma matemática, clean e objetiva de ver a vida e a assunção da realidade, seria um atestado de sanidade e lucidez.
House tinha medo de quase nada. Não tinha medo de doenças desconhecidas, não tinha medo da solidão, não tinha medo de perder amigos, não tinha medo de perder o emprego, não tinha medo da opinião alheia, não tinha medo do incerto, não tinha medo do futuro, não tinha medo do manicômio, não tinha medo da prisão, exceto de perder a lucidez.
A grande arma, o grande mote de House, os cabelos de Sansão era a lucidez. O momento mais crucial da personagem foi quando  pediu ajuda ao amigo Wilson por estar alucinando. Entendeu que perderia toda guerra se não pedisse ajuda, pediu, aceitou, esperneou, cooperou e venceu, este foi o único momento em que House baixou a guarda.
E quando todos pensaram (personagens e público) que depois do manicômio e da prisão ele mudaria, enganaram-se. Ele gostava de ser quem era, se amava com seus defeitos e imperfeições, os reconhecia e se perdoava e esfregava suas virtudes (inteligência, perspicácia, a presença de espírito, competência) na cara de todos sem a menor modéstia.
House se conhecia e vivia seus conflitos como desafios naturais, com os quais deveria conviver, House pedia desculpas, se reconhecia humano, chafurdava na lama do humano e tomava banho na condescendência alheia. House não tinha vergonha de seus erros, seguia em frente.
 O seguir em frente de House talvez seja o motivo da apreciação pública, o que mais se parece com o cotidiano de todos nós, o que traduz a necessidade de ação para continuar a vida. Não havia, na série, ações sobre-humanas ou lições de moral. O que havia era vida com cara de vida. O que se viu foi um ser humano em suas redes sociais se debatendo com seus conflitos internos, sua obrigações profissionais, sua capacidade cognitiva, sua condição de reles mortal e sua logicidade em relação à fantasia.
O que, talvez, tenha conquistado o público foi o quanto de igual temos e o quanto cultivamos uma pequena inveja da coragem de House de ousar ser quem era de fato e pagar todos os preços no melhor estilo: " Quem convive comigo sou eu mesmo".
Quanto ao amor? O exercício da sensibilidade no contato com o outro? Ah! isso é assunto pra outra prosa.


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