domingo, 18 de dezembro de 2011

PROCURA-SE GODARD

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FILM SOCIALISME Elenco: Catherine Tanvier,Christian Sinniger, Jean-Marc Stehlé,Nadège Beausson-Diagne;Direção: Jean-Luc Godard; Drama, França/suiça; 2010;101'

O Último filme de Jean-Luc Godar é um festival de signos à deriva num mar de possibilidades amarrados a um tema. O cotidiano, a história, os conceitos cortados ao meio pelo capital, o ouro, o dinheiro. Godard brinca com signos imagéticos, sonoros, discursos históricos/filosóficos e ideológicos num balé de ritmos descompassados e dissonâncias. A obra tem três blocos que se interseccionam nos diálogos e se associam.
O primeiro bloco é o do cruzeiro pelos países do Mediterrâneo, que tem como passageiros o filósofo francês Alain Badiou, a cantora norte-americana Patti Smith, arábes, judeus, africanos, americanos e russos. Todos em diálogos remetentes ao capital. A significação das águas do mar é dinheiro público, dito pelo próprio Godard, que deveria ser usufruido por todos, mas somente alguns desfrutam, e neste mar, tubarões atacam cardumes imensos de peixes pequenos. Nos distribuidores de moedas dos caça-níqueis no cassino do transatlântico, as pás se movem sem nada distribuir. O signo moeda aparece em muitos enquadramentos, numa alusão à corrupção e à ostentação.
No segundo bloco, o clã dos Martin, uma família socialista, a simbologia da cor vermelha permeia o cotidiano. A ideologia é representada pelo estilo de vida, pelos livros que são expostos, pelos discursos, pelo patrimônio da família e pela postura diante do capital.
O terceiro bloco consiste na narrativa histórica dos acontecimentos que se passaram nos lugares por onde o transatlântico aporta, com elucidações dos signos expostos nos dois blocos anteriores.
O filme é repleto de sonoridades, músicas, burburinhos, sons de vento, ruídos, cadenciamentos alterados que sugerem resignificações das imagens às quais se referem, e faz uma bordagem filosófica e prática do uso do registro quando diz que, contar nunca é suficiente e, apresenta a camêra fotográfica e a câmera de filmagem como coadjuvantes.
São seis os idiomas usados, francês, inglês, alemão, russo, árabe e o grego. Numa saga linguística que traça uma linha do tempo desde o princípio da civilização à era da lingua universal. Todos perpassados pelo capital, numa babel proposital.
As imagens históricas são retiradas de grandes clássicos do cinema mundial, como: Encouraçado Potenkim; Alexandre, o grande; Viaggio in Italia; Adieu Bonaparte; Bataille de Marathon; Les millet et une nuits, dentre outros.
Os discursos foram, da mesma forma, de grande monta: Walter Benjamim; Jean-Paul Sartre, Ferdinand Braudell; André Malraux; Claude Lévi-strauss; Martin Heidegger; Johann Wolfgang von Goethe; William Shakespeare, dentre outros.
Nas músicas, tem-se nomes como: Betty Olivero (Jazz); Arvo Parts (clássica); Ludwig von Beethoven (clássica); Geoge C. Baker (organista); Chet Baker (Jazz); Bernard Alois Zimmermann (dissonâncias) e outros. Tudo fazendo bom uso do capital em favor da divulgação do discurso de liberdade. Pois o filme não tem patrocinadores e numa de suas falas ácidas, diz: " a liberdade custa caro..."
Os livros exibidos são: Ilusões perdidas de Balzac; Markus - o espião alemão de Roger Foligot; A porta estreita de André Gide e Princípios da tragédia de Racine.
Todo esse acervo signico à disposição do espectador para fazer as conexões pertinentes. Sim, porque nenhum deles está ali por acaso. Na montagem de Godard o espectador mergulha num mundo de resignificações que medirá seu poder de conexão, de entendimento, seu repertório de conhecimentos gerais e a sua capacidade de poetizar.
No primeiro bloco, o inusitado é dado logo no início, com duas araras vermelhas e o sinal de censura, o famoso Piiii, muito usado quando da fala obscena, que surge também nos créditos, que são expostos no início da película. A comunicação no cruzeiro é entrecortada, fragmentada entre os viajantes, e causa no espectador uma desconfortável necessidade de agudeza na atenção. O som do vento, o disco arranhado da discoteca, os diálogos do segundo bloco que se iniciam no primeiro bloco causam um incômodo auditivo. O desconforto e o incômodo no bloco do capitalismo não é acidental.
No bloco da família Martin, que possui uma pequena propriedade - empresa familiar - um posto de combustível e uma oficina para carros, a filha mais velha, Florine fica na bomba de combustível lendo Balzac - As ilusões perdidas e, seus veículos são uma lhama e uma mula com rédeas vermelhas, que ficam "estacionadas" na frente da casa ao lado do BMW e porshe dos clientes. A ideologia da família Martin e a situação contextual num modo de produção capitalista, se manifesta nos pequenos detalhes; a oficina para  carros está desmoronando, o pai, Jean-jacques, faz contas o tempo todo, dorme no sofá com a calculadora, conversa com os filhos fazendo cálculos, a discussão familiar sobre os conceitos de igualdade, liberdade e fraternidade, lemas da revolução francesa, que também faz parte da pauta de conversações.
Os repórteres da rede de imprensa televisiva regional são enviados à casa dos Martin para registrar o dia-a-dia da família e entrevistar os possíveis candidatos à presidência a serem escolhidos pela convenção do partido socialista, possivelmente Jean-jacques ou Catherine, sua esposa, que se dará na comemoração do aniversário da revolução francesa.A repórter faz suas anotações sob a sombra de um moinho de vento numa alusão à obra de Cervantes, em que a imprensa como moinho de vento dissemina a informação, nem sempre real, e o clã dos Martin os D. quixotes numa luta contra o imaginário. A ideologia que salva e a imprensa que fomenta a batalha insana.
Os Martin eram o último bastião da resistência. Não usavam o verbo ser e evitavam falar com quem os usasse, numa alusão ao exagero que traduz a firmeza com a qual estavam dispostos a resistir ao sistema capitalista. O contraste do grande telefone preto frente aos dispositivos móveis, usados pelos clientes e pela imprensa, é enfatizada na fala de Lucien - filho mais novo, aproximadamente 10 anos de idade- que diz: " os capitalistas tem celulares para dizer que não estão".
A cor vermelha como símbolo ideológico é descaracterizada, quando o porshe e o carro da imprensa são vermelhos e até a natureza os usa - vide as araras vermelhas do início- numa referência a expropriação simbólica do vermelho como representativo de uma ideologia. A cena que representa a imagem do socialismo na sociedade contemporânea é a de Lucien vestindo uma camisa imensa vermelha com letras garrafais amarelas CCPP - Sigla para Rússia no alfabeto cirílico- regendo uma melodia descompassada, curta e intensa, depois cai no sono e tem pesadelos, sem ter tempo para crescer e preencher a blusa que veste.
O último filme de Godard é um desafio a atenção e, é apaixonante brincar de achar Godard em seu templo. O mestre do cinema de busca, acrescenta a todo o festival de informações um elemento ativo, que está presente no primeiro e no terceiro blocos, mas não se encontra no bloco dos Martin - a fotografia.
Há mais de 12 takes com fotógrafos em ação silenciosamente e sem explicação, fotografando no escuro, fotografando um fotógrafo tirando fotos, fotografando a leitura de jornal de um pasageiro, até o espectador é, alusivamente, fotografado. E, num take muito sugestivo, do fotógrafo do cruzeiro conversando no convés com um menino, diz com o close na câmera: " eu sei tudo" , e este e um dos pouquísimos closes realizados no bloco do cruzeiro, as tomadas neste bloco são sempre gerais. Os diálogos que remetem á fotografia versam sobre a faceta do registro fotográfico ser tido como real, como prova, como parte de um todo, que pode ser negado porque é parte, mas também é o todo daquela parte. E somando-se todas as partes dá um outro todo que não àquele do qual partiu e ainda faz citação à Louis Daguerre.
Evoca a fragmentação da informação imagética,a tendência á fabulação. No clã dos Martin o registro é feito através de filmagens, a imagem em movimento, também passível de manipulação ou fabulação, mas viva e em close, é o único bloco em que o close é regra, traduzindo intimidade, proximidade e descontextualização. A imagem viva não é o instante morto da foto, além de viva é o todo em si e não apenas uma parte. A imagem é citada no clã dos Martin como criação particular, mnemônica, em devir e quando Florine faz um discurso, cria uma imagem oralizada é diz; " pronto! criei a imagem".
E Godard brinca com as linguagens, a imagética, a musical, a fonética, preservando-as e se servindo delas. Através do uso de filmes antigos, músicas conhecidas ou não, idiomas falados e escritos e cita Gershom Shalem " Chegará o dia em que a língua se voltará contra aqueles que a falam" e aposta nos burburinhos e nas dissonâncias e explica citando Roman Jakobson " É impossível dissociar o som do sentido e que só a noção de fonema permite resolver este mistério, escrever para duas vozes só tem sucesso quando as dissonâncias são anunciadas por uma nota em comum".
O jogo com a linguagem dá um nó na cabeça do espectador fazendo-o revisar os títulos apresentados, as fotos, as imagens fílmicas de outras obras inseridas na película e tentar juntá-las numa lineridade impossível. A brincadeira com a linguagem, em Godard, é o labirinto do Minotauro fazendo-nos implorar pelo fio de Ariadne. E, esse fio é a própria capacidade de conexão de signos no tecer dessa rede.
A guerra, o tempo, a lei e a justiça são todos temas abordados em Film Socialisme, num raciocínio multifacetado e proposital, numa exibição fora de sequência convidando o espectador a montar o quebra-cabeças e beber da fonte segundo a capacidade do seu estômago.
Godard não grita " entenda-me" ele sussura no ouvido do espectador DESCUBRA-SE . Veja quantas conexões signicas você consegue fazer, analise seu repertório e visão de mundo, observe o tamanho da rede que você consegue tecer com o banquete que lhe é oferecido. Godard seleciona o espectador, os divide em nipes e nada declara. Não fica para observar o resultado. O filho está parido, é do mundo.
Mas numa ousadia delirante, na caça da agulha Godard no palheiro de seus emblemas simbólicos, indicias e icônicos atrevo-me a ressaltar duas cenas marcantes que julgo ter as digitais de Godard. A cena de Florine conversando com mãe no banheiro e a cena de Lucien retocando um quadro na escadaria externa da casa.
Na cena de Florine no banheiro, ela conversa com mãe Catherine antes de dormir. A mãe de roupão vermelho sentada na beirada da banheira, de frente para Florine e para o espectador. Florine em pé diante da pia e do espelho do armário, virada de lado para a mãe e para o espectador, sob um fundo musical suave de piano. Florine diz; "Não existem eleições simples" . A mãe retruca: "É preciso um programa". Florine responde: " sim, um programa" . A mãe continua: "e você tem um?" Forine lava as mãos, silenciosamente, escova os dentes devagar, lava a boca - enquanto isso a mãe e os espectadores aguardam- ergue a cabeça para o espelho mirando a si mesma e diz: " Ter vinte anos, ter razão, manter a esperança. Ter razão enquanto o governo está errado. Aprender a ver antes de aprender a ler".
Na cena de Lucien, o menino sentado na escadaria externa da casa com uma tela sobre as pernas, retocando-a. A câmera/woman da T.V regional chega perto e pergunta; " o que está fazendo?" Lucien responde: " acolhendo uma pintura de outrora". A câmera/woman vai verificar, se espanta, tira os óculos e grita: " Merda! isso é um Renoir! " Lucien responde: " O imbecil não viu muitas coisas bonitas". 
A simbologia do lavar as mãos das impurezas do cotidiano, lavar a boca dos resquícios das refeições do dia, limpando-se de todos os despojos e dizendo de alma limpa os desejos de um programa de governo que na verdade é um plano de vida, o sonho de juventude, o objetivo de lutar pelos ideais, sempre acreditar e perceber o mundo com a liberdade do discernimento antes de ater-se à codificação blindada, por convenção, da leitura. A trangressão de não mensurar uma criação artística, não respeitar os milhões de dólares que representam uma pintura de Renoir e a ousadia de desfossilizar o belo colocando-o em devir.
Godard finaliza a película com a seguinte sequência:
COISAS: Alguém colocando moedas nas mãos de  alguém; outro alguém fotografando...
COMO ESTAS: Alguém colocando um colar de dinares sobre uma mesa de madeira e um aviso do FBI sobre a exibição, cópia e distribuição da obra serem crimes puníveis na forma da lei, e letras garrafais surgindo em cima do aviso dizendo: " quando a lei é injusta a justiça sobrepoem-se à lei" e a  última frase: " Sem comentários".
É com essa frase que o espectador fica só, pensando e de cabeça pra baixo, porque não há créditos finais para dispersar a atenção, eles vieram no início, lembra?....até porque, o filme é pra ser visto de trás pra frente.....simplesmente Godard.

































































































































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