domingo, 30 de junho de 2013

O PALHAÇO, A CARTEIRA DE IDENTIDADE E O VENTILADOR

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Nota: Este texto desvenda o enredo.

O Palhaço. (drama, comédia e aventura) Elenco: Selton Mello, Paulo José, Larissa Manoela; Diretor: Selton Mello; Brasil, 2011.

Benjamim Savala Gomes (Seltom Mello) é o nome da personagem  que tem crise de identidade profissional, crise existencial, depressão, não sorri e veste o palhaço chamado Pangaré para fazer os outros rirem. Um palhaço sem carteira de identidade, só tem certidão de nascimento, nasceu...e só.
O filme o palhaço, segundo o próprio criador (Selton Mello), nasceu de uma crise profissional, de um momento de questionamento. A obra fala do cotidiano de todos nós numa narrativa sofisticada e poética. Produzido em 2010 traz à baila a candura, o sonho, a dúvida e o desejo. É uma comédia sonhadora.
Taxado de brega por falar de povo  e usar canções antigas, de serestas, vulgarmente conhecidas por embalar  dor de cotovelos como "Eu amo a sua mãe" de Lindomar Castilho e "Tudo passará" de Nelson Ned, dentre outras escolhidas e criadas por Plínio Profeta, O Palhaço tem o diferencial de falar do homem comum, de objetos comuns, de ser misturado com a poeira da estrada, com o canavial, com o bar da esquina,  com a praça central da cidadezinha, com a mesmice, com a rotina e com a lentidão da vida.
Para criar a história um trabalho de pesquisa sério foi desenvolvido por Alessandra Brantes (pesquisadora circense) que lida cotidianamente com produção de circo e políticas que favoreçam artistas  circenses; também foram empreendidas viagens por Alagoas e Brasília e realizado um mapeamento dos grandes artistas de circo do país. Tudo o que se ouvia, tudo o que se falava nessas viagens foram combustível para contar essa história, que teve o alinhavo final feito por Marcelo Vindicatto (roteirista). O objetivo foi criar uma obra  em que os artistas de circo se sentissem representados. As locações foram montadas em Paulínea (SP) e Ibitipoca (MG),  a história ambientada na década de setenta.
O cotidiano é retratado de forma brilhante na diversidade de pessoas e tipos, no homem ordinário, no povo, na estrada de barro vermelho, nos improvisos, na criatividade, nos objetos (tiara, trombone, ventilador, etc...) e na devoção a São Filomeno - protetor dos músicos, comediantes e palhaços - e que se estende até a equipe de produção que, literalmente, passou a acender uma vela para o santo todos os dias em agradecimento ao tempo bom que encontravam nas locações a céu aberto. Mas a ode ao cotidiano é dada na cena do delegado Justo (Moacyr Franco), a representação de poder da cidade com o dia a dia igual ao do homem comum e sujeito a todos os mal-entendidos próprios do mesmo.(confira)
Selton Mello, em relação à técnica diz que preferiu a câmera parada e as cenas centralizadas  fazendo o espectador assistir ao filme como se estivesse na plateia de um circo, em que, de qualquer lugar que se esteja a visualização é central. A fotografia de Adrian Teijido imprime o sonho e tem uma riqueza visual de encher os olhos. A trilha sonora teve como desafio ser original, num meio em que as músicas são clichês, Plínio Profeta inovou e fez uma trilha singela. O filme teve, ainda, a assessoria do palhaço real Kuxixo.
Benjamim é um sujeito triste, com responsabilidades e solicitações que ele não dá conta, um palhaço que não ri na foto, tem uma introspecção excessiva e não tem rumo, seu desejo é ter um ventilador,que não se apresenta só como uma necessidade para aplacar o calor mas também representa um luxo, sinal de importância no circo, além de simbolizar novos ventos, novos ares, vida nova. A personagem do palhaço Pangaré, que se sobrepõe à personagem Benjamim é a personificação de seu estado d'alma. Na fala de Paulo José: "o palhaço não tem família, palhaço é sozinho, palhaço não é casado, é solitário, abandonado, triste, patético, o palhaço faz chorar rindo". Essa tristeza e insatisfação reinante na vida de Benjamim é o que o impulsiona a buscar novos horizontes, buscar a si mesmo. Vai rumo à cidade de Passos ( cidade natal de Selton Mello) à procura de Ana na loja Aldo auto-peças e no caminho começa a escrever a sua história, a construir sua identidade.
Na necessidade de um emprego estável, tira a bendita carteira de identidade, que lhe fez falta na identificação a um policial e na tentativa de compra de um ventilador. Consegue  o emprego de atendente numa loja, cabelos penteados, empastados, sem frizz, enquadrado em uma janela de atendimento com cara de segunda-feira todos os dias e ligado no automático, se ajustando, entrando no esquema, engomadinho atrás de um balcão, vendendo o que não podia comprar, enquanto isso, o ventilador de teto do seu departamento continua parado.
Quando assiste a seu chefe contar piadas e fazer as pessoas rir, ele ri pela primeira vez e percebe o quanto é importante, prazeiroso  e difícil e, por conseguinte, valoroso esse exercício. Despenteia seu cabelo na frente do espelho, olha para a carteira de identidade, compra um ventilador e volta para o circo...no caminho faz graça por/com prazer.
Benjamim descobre a liberdade do palhaço, nas palavras de Selton Mello: "o palhaço pode entrar e sair da poesia, passar de momentos de pura ilusão para realidade mais concreta, se mostrar feio e belo, revelando esse caráter próprio do ser humano que é ser plural" .
Assim Benjamim faz o rito de passagem de ter dúvidas sobre a profissão e descobrir que é um bom palhaço, e ser palhaço é um processo de criação diário, de reinvenção de identidade, é uma construção e desconstrução  representada pelo seu processo de maquiagem. " o processo solitário de criação do palhaço é marcado totalmente pela sua individualidade e introspecção, inicia-se antes da entrada em cena, o palhaço começa a nascer no momento em que ele se depara com o espelho. Cada palhaço em seu estilo próprio para se pintar, uns seguem a tradição da família, outros se inspiram em algum palhaço, existem aqueles que concebem a maquiagem tendo como referências seus próprios traços faciais" . Mas, independente disso, essa simbologia de recriação diária do palhaço dá a essa personagem uma singularidade dentre todos os demais personagens do cotidiano.

O contexto do dilema de Benjamim é o circo Esperança. Uma trupe formada pelos  palhaços Pangaré (Selton Mello) e Puro Sangue (Paulo José); a dançarina Lola (Giselle Motta), lady e devassa; Guilhermina (Larissa Manoela), os olhos do circo; a cigana Zaira (Teuda Bara); Os irmãos Lorota: João Lorota (Alamo Facó) e Chico Lorota (Hassen Minussi), os músicos do circo; formando uma grande  família que viaja Brasil afora fazendo rir, vendo, ouvindo, percebendo e dialogando com a vida e seus passantes.
O documentário do filme, (palhaço.doc) define o mundo do circo, o circo em si e a realidade do circo brilhantemente. O mundo circo é todo o exagero e caricatura do cotidiano vivido por cada um de nós. "... é um mundo ilusório que parte de uma total desordem e que será organizado em forma de espetáculo, o circo vem a ser o mundo das possibilidades, um que aproxima o real do irreal, ele apresenta a realidade de forma antinatural e utiliza os desejos e a imaginação para fazer dessa loucura algo, perfeitamente, normal que só se perpetua graças a um mecanismo, a transmissão do saber de pai para filho" . O circo, segundo Marcelo Pontes, o diretor do documentário ... "é uma colcha de retalhos, um relicário, o circo é o último vestígio de um saber antigo, existencial e iniciático, essa arte ancestral e única é o circo". A realidade do circo é  o extrapolamento do cotidiano, é o homem indo além de seus limites... " a única realidade do circo é a ilusão, essa é uma característica do cômico, traz a vida para o palco, tornando-a risível".

O mais interessante do circo é público para o qual é voltado, mesmo que não só, as crianças. Pra quem as coisas banais são grandiosas, para quem tudo é estranho, desordenado e que jamais tira folga de ser o que é...criança. Elas são os olhos do circo, que tudo vêem, tudo testemunham e iluminam o circo, sabem de tudo o que acontece, a criança é o farol da esperança.
O instrumento do circo é a emoção, aquela que não tem dono, território, endereço e, é uma parte da qual somos feitos, se não o formos completamente. O que interessa no filme O Palhaço são as paisagens interiores, aqueles personagens, o que eles pensam, o que eles sentem. A máxima evocada pela obra foi: " na vida a gente deve fazer o que a gente sabe fazer, o rato come queijo, o gato bebe leite e eu sou palhaço"  Assim termina a película que faz pensar, que procura fazer uma ode aos artistas circenses e "importantizar" o riso, a alegria, o ser criança. Marcelo Pontes ainda diz: "...o palhaço permanece sempre no absurdo, sempre no imaginário, no paradoxo, no grotesco. O palhaço deve fazer rir e pensar, sonhar e refletir; o palhaço não tem psicologismos, sua lógica é física, ele pensa e sente com o corpo" e acrescenta sobre o privilégio a responsabilidade de ser um palhaço, ao contrário do que muitos pensam, que é fácil, que é uma brincadeira e situa a necessidade que a humanidade tem do palhaço.  "Que privilégio e responsabilidade é ser um palhaço, assim como tantos outros espalhados mundo afora e por sociedades tão distintas, fazendo a humanidade rir e se confraternizar com suas semelhanças e diferenças".  Na medida em que o mundo perde sua capacidade de brincar e se reinventar ainda mais fundamental se torna a figura do palhaço, este viajante no tempo e na história da humanidade.


Em suma, o filme de Selton Mello, como ele mesmo disse a dois anos atrás, "é o circo misturado com circo, um circo dentro do circo é o cinema dentro do circo, o circo é feito da mesma matéria do sonho, então é uma bela dobradinha" . Como drama/comédia a obra reencarnou o dizer de Oswald de Andrade " no humor reside o catastrófico e talvez toda a natureza humana". A aposta num filme brega rendeu vários prêmios (veja) e a indicação a indicação ao Oscar 2012, mas não conseguiu chegar lá. Isso não importa, com um milhão de meio de espectadores - um feito e tanto no Brasil para uma película nacional - fez sucesso também no exterior. Segue a entrevista de lançamento do filme em Madri, (aqui) - num portunhol legal, rsrrsrsrsr - apesar de brega.
E por falar em brega, perguntaram a Moacyr Franco se isso fazia diferença pra menos e se ele era brega, dando a entender que se o filme fosse mais sofisticado chegaria mais longe, ganharia mais prêmios e teria maior número de espectadores e por conseguinte ele também (Moacyr); a resposta foi brilhante: "Só vinte porcento de mim é brega o resto não vale nada" e fechando o ciclo da produção espetacular de O palhaço foi lançado no final de 2012 o livro . Fazendo um apanhado geral foi feito barba, cabelo e bigode, nada mal para um filme nacional, num país em que tradicionalmente se consome blockbuster de péssima qualidade. Afinal venceu a poesia, pois o filme, tinha como objetivo maior buscar ternura  e se  isso não ganha nem indicação ao Oscar ganha aplausos e muitos vivas à produção brasileira, que vai muito bem, obrigada! Viva o brega! Viva o circo! viva a ternura!



3 comentários:

  1. Um belíssimo filme sobre a busca pela identidade =)

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  2. Concordo plenamente, por isso, quando o vi não resisti e tive que escrever sobre para desopilar tudo o que estava sentindo. O que é o cinema, não? Abraços!

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  3. É um filme não apenas para ser visto e sim sentido.

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