domingo, 24 de agosto de 2014

OLHOS FRIOS

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Quando olho para a jornada já vivida percebo as diferenças na forma de ver o mundo. De ontem e de hoje. A diferença de perspectiva, a de expectativas, e o mais doloroso, o quanto nos descobrimos enganados comprando o sonho alheio.
Meço o quanto é necessário de coragem para ver com os próprios olhos e seguir sem ilusões. Numa leitura sobre o filósofo Vilem Flusser, um texto belíssimo, o autor disserta sobre a dor e a procura de Vilem no que concerne a Deus. Que sua família o impunha como sendo inquestionável, pelos feitos da natureza e pela imperfeição humana. E esse Deus era bom. Até Vilem ir pescar com o tio e vê-lo espetar uma minhoca viva num anzol. Aos nove anos, o grande futuro filósofo, pensou...Se esse Deus é bom, por que deixa a minhoca sofrer espetada num anzol ? (...) esse Deus com certeza não é o Deus das minhocas, e ele não é bom.... Mais tarde Vilem viria comparar o sofrimento das minhocas ao dos judeus na segunda guerra, da qual fugira, aos dezenove anos.
E, segundo o autor, Vilem, como tinha necessidade de acreditar em um Deus, o buscava em tudo. Não um Deus infantil, inventado ao bel-prazer do inventor, mas o que fosse bondade e grandiosidade. No texto, existem trechos de Vilem que diz que seu raciocínio e sua inteligência, sua forma de conectar as informações e sentí-las não admitia que aquele Deus da família fosse o que ele deveria acreditar, simplesmente porque era incoerente. Mas não lhe negou a existência, nem a necessidade de um Deus. E admirei os olhos frios de Vilem Flusser.
Quando leio esta história, me pego pensando no que estas construções de coerências, segundo o que vemos, sentimos, vivemos, lemos, etc... São capazes de nos mostrar, o que nos fazem questionar com propriedade e o quanto somos capazes de  ser leais a nós mesmos. Desmistificando algumas "verdades" que nos venderam um dia. Há que se ter olhos frios para ver a "realidade" e desconstruir as mentiras.
Com olhos frios vi que meus pais estavam equivocados.
Com olhos frios percebi que o mundo são vários.
Com olhos frios descobri que não existem verdades.
Com olhos frios sei que estamos sós, e todos acompanhados.
Com olhos frios percebo que o pilar de nós, somos nós mesmos.
Com olhos frios me orgulho de acreditar em mim.
Com olhos frios me ressinto do tempo perdido.  Mas, sei que foi ele que me deu a possibilidade de parar e decidir.
Com olhos frios descobri que o amor é a história mais mal contada de todos os tempos.
Com olhos frios descobri que criamos grilhões invisíveis e nos atamos a eles.
Com olhos frios descobri que tudo é banal e que a vida, possivelmente, é uma grande piada.
Com olhos frios desnudo a vida com suas questões.
....Mas, lá fundo, espero chegar um momento da jornada, que descubra que meus olhos frios também mentiram e que se retire o último véu. E que eu descubra os porquês escondidos em toda essa ciranda.
Os donos de olhos frios são eternos sofredores, porque se os fecham perdem o aprendizado e se os abrem, morrem de dor e medo.
 
Texto referência:
BERNARDO, Gustavo. A sacralização do cotidiano - o conceito central para o pensador: O conceito de Deus. Trata-se de um Deus poético. In: Dossiê Vilém Flusser - O filósofo da imagem, do design e da linguagem. Revista Cult nº 187, ano 17, Fev 2014.
 
 

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